O ‘meramente contábil’ ataca nos balanços novamente

Publicado em 19/5/2020

Os prejuízos recordes da Suzano e do frigorífico JBS no primeiro trimestre tiveram um ponto em comum: a desvalorização cambial fez estrago nos resultados financeiros

Os prejuízos recordes da fabricante de papel Suzano e do frigorífico JBS no primeiro trimestre tiveram um ponto em comum: a desvalorização cambial fez estrago nos resultados financeiros de duas companhias de setores completamente distintos.

A desvalorização de 29% do real nos três primeiros meses do ano reacendeu o debate sobre como essas variações violentas da moeda são registradas nas demonstrações financeiras. Pelas regras contábeis, o saldo das dívidas em moeda estrangeira deve ser convertido pela taxa de câmbio vigente no fim do trimestre, independentemente da data de vencimento das obrigações e se a dívida foi paga ou não naquele período.

Ao ter que explicar aos acionistas o rombo nas contas, dez entre dez gestores vão dizer que é “meramente contábil”, e emendar em seguida que “não tem efeito caixa”. Esse aparente desprezo, senão pela contabilidade, mas pelo regime de competência que rege as demonstrações financeiras, reforça um vício já arraigado no mercado de usar medidas “alternativas”, como o Ebtida, que costumam ignorar os efeitos chamados não recorrentes e, dependendo do grau de ajuste, ignorar qualquer efeito que impeça a empresa de chegar no resultado desejado.

Esse ruído de informação incomoda os especialistas não é de hoje. Em meio ao avanço da pandemia, a queda sem precedentes do preço do petróleo e os atritos políticos que mexiam com o câmbio, os professores de contabilidade Ricardo Lopes Cardoso e Natan Szuster decidiram que era hora de voltar ao assunto. A eles, uniu-se Eliseu Martins, professor emérito da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da Universidade de São Paulo.

“Fala-se muito atualmente sobre a maior possibilidade da realização de baixas contábeis por causa da pandemia, mas a questão do câmbio não tem sido discutida da mesma forma”, afirmou Cardoso, professor da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista ao Valor.

A preocupação torna-se ainda mais relevante porque, numa coincidência infeliz, as distorções causadas pelo reconhecimento da variação cambial somaram-se aos efeitos da introdução de uma nova norma contábil, a IFRS 16, que levou para dentro dos balanços ativos e passivos que antes ficavam de fora, como contratos de arrendamento. Na prática, são mais despesas financeiras, anotadas como gastos com juros de amortização dos ativos.

“Com a nova norma, o passivo em dólar de algumas companhias foi ampliado”, explica Szuster, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Os professores não querem mudar as normas — pelo menos não no curto prazo. Eles sugerem que as companhias utilizem as notas explicativas das demonstrações financeiras para deixar claro a investidores, analistas e curiosos em geral quais são os desdobramentos da perda da variação cambial no passado, no curto e no longo prazos. “Seria interessante se as empresas tivessem uma divulgação mais padronizada, evitando ruídos”, diz Cardoso. “Hoje existe um abismo entre a informação contábil e a que é analisada pelo mercado.”

Uma maneira de tornar mais transparente essa informação seria uma explicação tripartite. A primeira traria ativos e passivos em moeda estrangeira que já foram liquidados durante o exercício e que, portanto, já passaram pelo caixa. A segunda trataria da parte dos ativos e passivos em moeda estrangeira classificados no ativo circulante e no passivo circulante que devem afetar o fluxo de caixa do próximo exercício. Na terceira, a companhia mostraria quais são os ativos e passivos em moeda estrangeira classificados no ativo não circulante e no passivo não circulante, que muito provavelmente não terão efeito imediato.

Para uma solução mais duradoura, os professores sugerem que empresas, auditores e órgãos reguladores e normatizadores considerem a possibilidade de bifurcar a variação cambial entre a demonstração de resultados — onde entrariam ativos e passivos em moeda estrangeira já liquidados ou circulantes — e em outros resultados abrangentes, no qual seriam colocados os ativos e passivos em moeda estrangeira que não vencem no curto prazo.

Segundo Martins, alternativas como essas já foram discutidas e sugeridas no meio contábil, sobretudo por países emergentes, nos quais a desvalorização das moedas locais é algo recorrente. “A grande questão é que o Iasb [Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade, entidade responsável pela emissão de normas contábeis, com sede em Londres] é controlado por países que não sofrem com a questão cambial da mesma forma que os emergentes”, afirma.

Martins recomenda que as companhias sejam cautelosas ao mostrar os efeitos da crise nos resultados. “Eu defendo que as empresas abusem das notas explicativas ao invés de tentar fazer milagres no balanço”, diz ele. “Na incerteza de mensuração não reconheça, divulgue”, completa Cardoso.

Fonte: Valor Econômico – Nelson Niero e Rita Azevedo.