A guerra divide a comunidade global ESG

Publicado em 24/3/2022

Para o economista Gustavo Pimentel, há risco de empresas começarem a fazer sustentabilidade só para atender os investidores e deixarem de ter uma conexão com propósitos

A guerra na Ucrânia está dividindo o debate da comunidade ESG global: os investidores devem retirar seus recursos da Rússia? O tema está na origem dos investimentos éticos que surgiram no final dos anos 1960, excluíram ativos conectados à Guerra do Vietnã ou ao Apartheid da África do Sul e são a semente do movimento ESG.

Para dar mais tensão ao debate, a indústria da defesa pleiteia ser um setor de impacto positivo, nas discussões de taxonomia social em curso na União Europeia, por mais bizarra que a iniciativa pareça ser.

Segundo números da Global Sustainable Investment Alliance (GSIA), há US$ 35 trilhões investidos com uma ou mais das cinco abordagens ESG, da mais pragmática à mais ativista. Segundo a Morningstar, que avalia fundos de investimento, existem US$ 2,7 trilhões em fundos que se vendem como ESG e operam realmente com lentes ambientais, sociais e de governança sustentáveis.

“Vejo o risco de empresas começarem a fazer sustentabilidade só para atender os investidores e deixarem de ter uma conexão com propósitos. É um risco fazer só o que dá dinheiro e nos prazos compatíveis com o que o investidor espera”, diz o economista Gustavo Pimentel, um dos mais reconhecidos analistas socioambientais do mercado. “De qualquer modo, é bom notar que o ESG praticado pelos investidores não salvará o mundo. O setor privado tem grande contribuição a dar, mas só chega até um certo ponto.”

Pimentel trabalha com ESG desde 2004, data em que o termo foi cunhado por um grupo de pesquisadores de um braço do programa ambiental da ONU que cuidava de finanças, o Unep-FI. Foi fundador e diretor executivo da Sitawi, organização brasileira que busca mobilizar capital para investimentos de impacto positivo.

A indústria militar europeia está pleiteando ser incluída como uma atividade de impacto social positivo

ESG é um nome novo para algo que já existia no setor privado, mais especificamente no mercado financeiro, mas Pimentel não nega o crescimento do movimento e sua importância no processo de descarbonização global.

Acaba de ocorrer um “spin off” do programa de finanças sustentáveis da Sitawi e formou-se a Natural Intelligence (Nint), que nasce com 11 anos de experiência em mais de 700 projetos para 250 clientes e um time de cem pessoas. Pimentel é fundador e CEO da Nint. “Há quem diga que ESG pode significar qualquer coisa para qualquer um”, reconhece. “Mas e xistem cinco claras abordagens ESG e o investidor está se qualificando cada vez mais.”

A seguir trechos da entrevista concedida ao Prática ESG, onde ele fala dos desafios e tendências do movimento que virou febre entre as empresas:

Valor: Como surgiu o movimento ESG?

Gustavo Pimentel: A sigla foi cunhada em 2004, mas existiam conceitos que já ocupavam o mesmo espaço para empresas e também no mercado de investimentos desde os anos 1960. Era uma abordagem praticada por gestores de recursos independentes, fundos de pensão e entidades ligadas a instituições religiosas, que não que não queriam investir em empresas com problemas de direitos humanos, muito poluidoras ou em países em conflito.

Valor: ESG é um nome novo para um conceito que já existe?

Pimentel: Definitivamente. É um nome para algo que já existia, que é ligado ao setor privado, mais especificamente ao mercado financeiro.

Valor: O fato de ter nascido no mercado financeiro não pode tornar ESG algo que apenas dá dinheiro e não necessariamente é bom para o planeta?

Pimentel: Vejo o risco de empresas começarem a fazer sustentabilidade só para atender os investidores e deixarem de ter uma conexão com propósitos. É um risco fazer só o que dá dinheiro e nos prazos compatíveis com o que o investidor espera. De qualquer modo, é bom notar que o ESG praticado pelos investidores não irá salvar o mundo. Precisamos de melhor regulação, de acordos globais. O setor privado tem grande contribuição a dar, mas só chega até um certo ponto.

Valor: Há muito debate na comunidade ESG sobre os impactos da invasão da Ucrânia pela Rússia.

Pimentel: Empresas do Ocidente deveriam continuar a fazer negócios na Rússia? Investidores que compram papéis russos deveriam vendê-los e deixar de financiar indiretamente a guerra? E, além disso, a indústria militar armamentista europeia está pleiteando ser incluída como uma atividade de impacto social positivo.

Valor: É brincadeira?

Pimentel: Verdade. O argumento é que é uma indústria de defesa e se fosse forte, a Ucrânia poderia estar bem armada e resistindo melhor à invasão russa. Guerra e investimentos em regimes não-democráticos estão na origem do que se tornou o grande movimento ESG. O Social Responsable Investing (SRI) nasceu no fim dos anos 60-70 com investidores questionando e deixando de investir na guerra no Vietnã e em negócios na África do Sul no regime do apartheid.

Valor: Essa discussão agora divide a comunidade ESG no mundo?

Pimentel: É um debate sim, e que traz um desafio de execução. A importância para a economia global dos anos 70 do Vietnã ou da África do Sul era muito menor do que a da Rússia, o país boicotado hoje. Investidores com papéis ligados à Rússia, se quiserem vender agora, irão vender com pre ejuízo enorme, porque os ativos russos despencaram.

Valor: E ninguém quer comprar.

Pimentel: Exato. Há pouco comprador. Vários investidores responsáveis e com mandato ESG olham para a carteira e se perguntam se liquidam aquela posição e a transformam em pó. Um exemplo é o fundo de pensão de funcionários públicos da Califórnia, o CalPERS. É um dos maiores do mundo e um dos mais antigos na agenda ESG. Tinha cerca de US$ 300 milhões em ativos com conexões na Rússia. Se quiser se desfazer dos ativos agora, US$ 300 milhões viram zero. É muito dinheiro e é para pagar aposentadorias. A posição dos investidores mais raiz é de dizer que não é possível ficar associado com ativos na Rússia.

Valor: O que pensa sobre o pleito das empresas armamentistas?

Pimentel: A União Europeia criou uma taxonomia de negócios verdes, definindo setor a setor o que é verde. Foi muito polêmica porque teve a inclusão de gás e nuclear. Agora está finalizando a taxonomia social, analisando setores e negócios que entregam externalidades sociais positivas. O setor de defesa europeu está pleiteando isso e usando o gancho da invasão da Ucrânia pela Rússia dizendo que a Ucrânia precisava se defender. Acho um completo absurdo alguém pensar em colocar a indústria da defesa como de impacto social positivo.

Valor: São cinco as abordagens ESG?

Pimentel: Tem quem diga que ESG pode significar qualquer coisa para qualquer um, que cada um faz sua própria definição. Há um pingo de verdade na afirmativa. Mas ESG sempre foi classificado com cinco abordagens.

Valor: Qual é a primeira?

Pimentel: É a origem do movimento e ficou conhecida como investimento ético ou filtro negativo. É o investidor que excluía de seu universo de investimentos, de acordo com seus valores éticos, setores como defesa, tabaco ou jogos de azar. O debate da guerra é exatamente este: “não concordo com a guerra e não gostaria de apoiá-la com meu capital, sej a de forma direta ou indireta.” Esse é o ESG 1.0.

Valor: E a segunda?

Pimentel: É o chamado filtro positivo ou “best in class”. A ideia é. em vez de excluir as piores, selecionar as melhores observando um conjunto de métricas ESG. A terceira abordagem é a integração ESG. É a que chamo de pragmática ou autointeressada.

Valor: ESG pragmático?

Pimentel: É usar o fator ESG na decisão quando se acredita que se irá ganhar dinheiro com ela. Em combustíveis fósseis, por exemplo, a análise pragmática é: “Ok, pode haver o acordo do clima, mas se o preço do petróleo está subindo, talvez mais do que compense o risco de taxação de carbono. Então, não ameaça e vou investir”.

Valor: E a quarta abordagem?

Pimentel: É a stewardship. É o proprietário ativo e responsável naquele pedaço de empresa que tem, que quer votar nas assembleias de acionistas e colocar sua agenda ESG ao conselho e à direção da empresa. E com isso influenciar para que a companhia melhore a prática ESG. É o debate atual de investidores que não querem investir em empresas ligadas a ao desmatamento.

Valor: Estas abordagens coexistem? Há uma tendência mais forte?

Pimentel: Coexistem. A abordagem que mais cresceu nos últimos 10 ou 15 anos foi a integração ESG, o pragmatismo.

Valor: Há uma quinta?

Pimentel: O investimento temático, que busca identificar uma tendência de sustentabilidade do mercado ou da sociedade. Se há descarbonização, precisamos investir em energia renovável. Ou investir em empresas que desenvolvem eficiência hídrica.

Valor: Por que é importante o ESG se qualificar?

Pimentel: Se você se vende como um investidor ESG, tem que explicar o que você é. Tenho um fundo ESG que investe nas empresas da bolsa e que tem uma política de exclusão, de não investir em combutíveis fósseis nem em tabaco. Então você tirou duas ou três empresas, mas investe em todas as outras. É diferente de dizer que é um investidor ESG com uma abordagem “best in class”, isso vai diminuir muito o número de empresas que irá considerar elegíveis. Os investidores precisam explicar o que estão fazendo.

Valor: Como o conceito irá evoluir?

Pimentel: No mercado de investimentos, consegue-se medir bem qual foi o retorno do fundo. Precisa-se agora medir a externalidade para a sociedade dos ativos de risco. Isso está começando a ser desenvolvido, mas há uma dificuldade metodológica. Mede-se, por exemplo, a pegada de carbono do fundo, mas como se faz isso para biodiversidade ou para diver sidade e inclusão no quadro funcional?

Valor: A evolução se dará com indicadores e métricas?

Pimentel: Sim, buscando medir o impacto por unidade investida, por dólar ou real. A cada real investido em meu fundo você está emitindo tanto em CO2 equivalente. O grande desafio que temos é que se consegue fazer isso com carbono, onde temos métrica, o CO2 equivalente. Existem temas no ESG mais difíceis de serem quantificados.

Valor: O próximo passo será a descarbonização das carteiras?

Pimentel: É o que gostaríamos de ver, mas só se consegue descarbonizar carteira se a economia estiver descarbonizando. Há um limite até onde se consegue ir. Aqui faz diferença ser um investidor de pequeno, médio ou grande porte.

Valor: Qual diferença?

Pimentel: Um investidor profissional de pequeno porte consegue dizer claramente que não investe em tal setor. Mas imagine que você é um dos maiores gestores do país, com R$ 1 trilhão para investir. Se eu tirar daqui, onde coloco? Se a economia não começar a se mover, o investidor grande tem dificuldade em realocar o ativo. Ele precisa que a economi e a sociedade caminhem também. Isso aumenta o engajamento dos grandes investidores com a agenda de políticas públicas.

Valor: Os trilhões estão se movendo?

Pimentel: Temos bilhões se movendo. Talvez uns poucos trilhões.

Fonte :Valor Economico.